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Lá bem longe

Afasto de cada metro, de cada quilômetro, de cada dia. De contagens sem número que me mantém longe dos traços mais sinceros de quem eu sou. Dos meus pedaços, das minhas fotos, de meus sentimentos mais frágeis. Afasto dos eixos do meu corpo, do próximo retorno, da algoz falta que me fazem. Fujo da realidade escancarada que não quero ver e nem saber o que se tornaram.  Moro no beco, no escuro da minha imaginação, onde recrio os próprios personagens da minha vida. Limito suas histórias, os faço melhores que são e assim se tornam maiores e mais íntegros, mais inteligentes e com mais sentido dentro da vida que escolhi pra mim. Sou egoísta, pois prefiro que eles vivam do jeito que eu acho melhor. Não do jeito deles ou do jeito que a vida os fez. Do meu jeito, com a minha poesia e com o mesmo infantil e inocente traço que os desenho como vítimas da minha saudade. Assim os mantenho longe e os guardo dentro de uma caixa que mora dentro de mim. Abro de vez em quando, olho, remexo e volto a fechar com a esperança equilibrista de tentar me adaptar ao que um dia chamei de amizade.

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Finais

E aos poucos a festa íntima acabou. O fim havia se instaurado naquela relação já desgastada pelas constantes e intermináveis discussões sem sentido e sem imaginação. Amavam-se. Trocaram as últimas carícias, assim, sem jeito. As cabeças baixas e os olhares lânguidos não se cruzavam mais. Há tempos não dormiam em conchinha e não havia mais aquele carinho que se espera de anos de relação. Os diálogos não eram mais os mesmos e o calor e a agitação se extinguiram há tempos. As batidas no peito de ambos eram o único som audível, mesmo que isso fosse uma ironia incrível. O coração fala quando a boca já se calou. O coração grita quando o silêncio interrompe uma fala.

Só restaram os dois, trancados e isolados do mundo naquele espaço tantas vezes dividido e compartilhado. A frieza e a indiferença eram notórias nos corpos virados de costas um pro outro e pelas meias que ambos vestiam. As dele, com um buraco no dedão. As dela, com desenhos e já puída de tanto deslizar pelo chão. Nenhum dos dois dorme. As horas passam e os olhos continuam abertos, ora tentando se conformar com a situação e ora já pensando nos tempos solitários que virão.

Em meios as sombras que começam a se formar pelo raiar do sol, ficam as frustrações e a desesperança de um dia tudo se ajeitar. E o céu começa a clarear, apagando aos poucos, com a luz forte do dia, restos de uma coisa antiga chamada afeto.

Whatever ends

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Uma visita e algumas considerações

Naquele dia, um grande amigo meu veio me visitar. Chegou, como sempre, com bebida embaixo dos braços. Eu, que repousava de ressaca o meu descomportado corpo no sofá da sala, o recebi com dois sentimentos distintos: alegria de vê-lo e saber que teria uma tarde de sábado agradável e engraçada, e a tristeza de saber, já de antemão, que acabaria às 6 da manhã em algum lugar imundo, completamente bêbado e que meu domingo seria ainda pior que esses momentos que precedem a sua chegada. Minha cabeça doía.

Todos os meus amigos são grandes beberrões, alguns com extrema habilidade para tal e outros, mais fáceis de levar, que bebem menos do que eu. Não sei qual faz mais mal pra mim, sinceramente. Os que bebem muito, eu bebo pra acompanhar. Os que bebem pouco, eu bebo pra beber mais que eles e manter assim a tradição. Enfim, não tenho muita saída.

Ele entrou em casa como entram os grandes amigos, me reduzindo a um bom filho da puta bêbado e dizendo que minha cara estava horrível, além de estar amarelo, provavelmente por conta de algum problema de fígado. Dirigiu-se direto pra cozinha, abriu a geladeira, colocou as trocentas cervejas dentro e deixou duas pra fora.

Relutei, juro. Por dois longos minutos eu relutei incessantemente. Como bom amigo que é, me xingando de viado e coisas do gênero, abriu as duas cervejas, deitou no sofá, acendeu um cigarro e disse, com o maior grau de amizade já visto:

– Porra, tu já foi melhor, hein…

Aqui eu chego ao ponto: A chantagem emocional.

A chantagem emocional na amizade é a maior chantagem que se pode encontrar em todas as relações humanas. No amor, nas relações de trabalho, nas crises diplomáticas ou na chantagem pura simples, acreditem, há saída. Na chantagem emocional feita por um amigo, não há. Pelo menos pra mim.

O sentimento que aplaca o meu coração quando a chantagem é dirigida à minha pessoa é indefinível. Não sinto isso em nenhuma outra situação, juro. É uma coisa única, que trava as minhas pernas, seca a minha boca, me faz colocar as mãos no bolso quando os tenho disponíveis e, invariavelmente – digo, quase sempre – me faz sacudir a cabeça em sinal positivo, mesmo que comprima os lábios em sinal de negação.

Há, como nós sabemos e sofremos com isso, pessoas que sabem usar esse artifício de maneira irretocável. Mestres em fazer da digna arte da amizade uma mal trançada teia de chantagens emocionais e sentimentos de culpa.

E disso também se trata a amizade. Ceder a essas chantagens faz parte da entrega e da receita de uma boa e sincera amizade, pois o “por favor” não tem tanto apelo quanto a intimidade. Isso é fato.

Não cedo sempre, como pode parecer, mas garanto aos céus que aquela tarde continuaria a se desenvolver naquele mesmo sofá, de cuecas e com a minha cara de aspecto amarelado tranquilamente.

Por essas e outras que escolho meus amigos pontualmente. Deixo a eles o meu livre-arbítrio, pois, mais sábios, sabem melhor do que eu o que fazer e do que abdicar. Faço isso conscientemente, pois não há livre-arbítrio mesmo, só há essa profunda sensação de que a gente sabe o que está fazendo.

No final, posso estar completamente errado, como vivem falando que estou.

Portanto, chantageiem-me, chantageiem-me!

Or don’t. Whatever.

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Um amigo!

Em um quarto de roupas verdes claras repousou meu último contato físico. Não transpareceu a morte ou sequer se ouviu um lamento. Esperança o cercava de todos os lados e jamais nos abandonou. Desde a sua última fala, que sussurrou ao meu ouvido com a cabeça apoiada em meus ombros e me dando um abraço, o meu silêncio se tornou a minha maior fé. O ato demorado de cerrar os olhos e calar nossas almas já dura tempo demais, mas continua enchendo o coração de amor e saudade.

E, na verdade, por trás dos olhos tão verdes quanto a roupa do quarto, ainda continua, de alguma forma, vendo e sentindo o que se passa entre nós. O entendimento do que aconteceu não é claro pra ninguém e é demasiadamente doloroso não poder interagir com quem é um sábio nessa arte. Interação essa que ultrapassa os limites do meio físico e das inúmeras gargalhadas que ouvimos sempre de forma tão concreta. E o sentimento é uma coisa difícil de ser compreendida. Tão difícil que extrapola a linha tênue do que é a vida e a morte, mas nos garante contornos intermediários desse parodoxo e nos faz viver indiferentes a essa situação. Cada qual que fez parte dessa vida exprime essa força de uma forma única, mas acredito que todos se ligam a ele em circunstâncias absolutamente singulares para remediar uma nostalgia tão latente.

Não são festas, encontros e muitos menos textos como esse que irão ajudar patologicamente ninguém, mas sempre tentamos, desesperadamente e de uma forma até egoísta, satisfazer esse nosso sincero ímpeto de ajuda. Guardamos na memória as melhores lembranças e lhe damos o reconhecimento tão merecido.

E se não pude fazer nada melhor para ajudar um amigo do que escrever essas linhas, peço perdão, mas dentro do mesmo coração que sente essa saudade imensa, também repousa o sentimento efêmero de que a vida continua. Sempre e pra todos nós.

Wherever you are

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