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Uma visita e algumas considerações

Naquele dia, um grande amigo meu veio me visitar. Chegou, como sempre, com bebida embaixo dos braços. Eu, que repousava de ressaca o meu descomportado corpo no sofá da sala, o recebi com dois sentimentos distintos: alegria de vê-lo e saber que teria uma tarde de sábado agradável e engraçada, e a tristeza de saber, já de antemão, que acabaria às 6 da manhã em algum lugar imundo, completamente bêbado e que meu domingo seria ainda pior que esses momentos que precedem a sua chegada. Minha cabeça doía.

Todos os meus amigos são grandes beberrões, alguns com extrema habilidade para tal e outros, mais fáceis de levar, que bebem menos do que eu. Não sei qual faz mais mal pra mim, sinceramente. Os que bebem muito, eu bebo pra acompanhar. Os que bebem pouco, eu bebo pra beber mais que eles e manter assim a tradição. Enfim, não tenho muita saída.

Ele entrou em casa como entram os grandes amigos, me reduzindo a um bom filho da puta bêbado e dizendo que minha cara estava horrível, além de estar amarelo, provavelmente por conta de algum problema de fígado. Dirigiu-se direto pra cozinha, abriu a geladeira, colocou as trocentas cervejas dentro e deixou duas pra fora.

Relutei, juro. Por dois longos minutos eu relutei incessantemente. Como bom amigo que é, me xingando de viado e coisas do gênero, abriu as duas cervejas, deitou no sofá, acendeu um cigarro e disse, com o maior grau de amizade já visto:

– Porra, tu já foi melhor, hein…

Aqui eu chego ao ponto: A chantagem emocional.

A chantagem emocional na amizade é a maior chantagem que se pode encontrar em todas as relações humanas. No amor, nas relações de trabalho, nas crises diplomáticas ou na chantagem pura simples, acreditem, há saída. Na chantagem emocional feita por um amigo, não há. Pelo menos pra mim.

O sentimento que aplaca o meu coração quando a chantagem é dirigida à minha pessoa é indefinível. Não sinto isso em nenhuma outra situação, juro. É uma coisa única, que trava as minhas pernas, seca a minha boca, me faz colocar as mãos no bolso quando os tenho disponíveis e, invariavelmente – digo, quase sempre – me faz sacudir a cabeça em sinal positivo, mesmo que comprima os lábios em sinal de negação.

Há, como nós sabemos e sofremos com isso, pessoas que sabem usar esse artifício de maneira irretocável. Mestres em fazer da digna arte da amizade uma mal trançada teia de chantagens emocionais e sentimentos de culpa.

E disso também se trata a amizade. Ceder a essas chantagens faz parte da entrega e da receita de uma boa e sincera amizade, pois o “por favor” não tem tanto apelo quanto a intimidade. Isso é fato.

Não cedo sempre, como pode parecer, mas garanto aos céus que aquela tarde continuaria a se desenvolver naquele mesmo sofá, de cuecas e com a minha cara de aspecto amarelado tranquilamente.

Por essas e outras que escolho meus amigos pontualmente. Deixo a eles o meu livre-arbítrio, pois, mais sábios, sabem melhor do que eu o que fazer e do que abdicar. Faço isso conscientemente, pois não há livre-arbítrio mesmo, só há essa profunda sensação de que a gente sabe o que está fazendo.

No final, posso estar completamente errado, como vivem falando que estou.

Portanto, chantageiem-me, chantageiem-me!

Or don’t. Whatever.

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Não me sinto velho, senil, nem muito menos caquético. Sou um moribundo de poucos cabelos brancos que continua a insistir em meu bem estar. Nos meus passos de poucos centímetros vejo a vida passar em duas ou quatro rodas, enquanto o amanhecer exalta o meu câncer de família. Minha tosse crônica ainda persiste ecoando em muitos tons dentro de minha caixa torácica, mas, mesmo velho, ainda retorço meu pescoço olhando a bundinha da menina que passa e rebola de graça a caminho do mar. Não trepo há anos. Continuo ‘step by step’ sendo o escroto que sempre fui, exalando o cheiro de perfume barato que comprava na quitanda do japonês da esquina da minha casa. Tenho três filhos. Um está preso, um é médico e a outra deve ser puta. Minha mulher é feia, chata e não me agüenta mais. “Uma santa”. Meu ‘shorts’ curto revela minhas varizes e minha meia esgarçada denuncia minha podridão. Fiquei velho e, às sete da manhã, vejo o mundo passar com meu olhar cercado por pés-de-galinha. Peço ao mundo mais alguns anos, meses ou dias de vida. Anos, meses ou dias que permanecerei reclamando e fazendo da nostalgia meu melhor esporte. Distribuo conselhos a torto e a direito, mais torto do que direito. Uso óculos, tomo um monte de remédios, tenho vícios incuráveis e passo as minhas horas tentando ser lembrado de algum jeito. Minha camisa traz os dizeres “Não maltrate o bêbado. Leve-o para o primeiro bar que encontrar”.

Poucos minutos atrás, assolado pela madrugada, sentei no banco da praia e tomei uma cerveja com este homem. Este apenas resumiu, em palavras disléxicas, boa parte do teor da conversa.

É incrível como um simples gesto ou um pouco de atenção pode ser cativante.

Whatever drunk people

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